O mito da criação da lusofonia
Tribuna Popular. Ano IV, número 173. 27/01/2006.
O MITO DA CRIAÇÃO DA LUSOFONIA.
Bruno Cava
Conta a mitologia grega que certo dia Zeus foi acometido de tenebrosa enxaqueca, mas tão gravosa que o mais poderoso dos deuses entrou em desespero e pôs-se a bater a cabeça contra as paredes. Numa cabeçada particularmente forte, seu crânio rachou e súbito, para surpresa geral, de dentro dele irrompeu uma deusa armada por inteiro e executando a característica dança bélica helênica. Noutra versão, Zeus é golpeado pelo machado de Hefesto, produzindo o mesmo resultado: o nascimento da deusa da inteligência e da estratégia, Atena (Minerva para os romanos). Deusa sem mãe e por isso queridíssima pelo augusto progenitor.
Atualmente, vigora mito similar nestas bandas, o de que a Lusofonia teria surgido abrupta e armada da cabeça de Aguiar, como Minerva do crânio de Júpiter. Numa autêntica religião, crê-se – ou pelo menos divulga-se – que, numa inspiração divina, Aguiar teria criado a Lusofonia ex nihilo. Ele seria uma espécie de grande patriarca – de pai primordial deste eixo histórico-cultural de convivência de micronações e micronacionalistas.
Ocorre que, malgrado a persistente campanha de desinformação, o micronacionalismo lusófono não apareceu do nada, muito pelo contrário: inseriu-se em um micronacionalismo que o precedia não apenas cronologicamente, mas também em termos de práticas, valores e conceitos vigentes. Quando Aguiar inaugurou o então “país de imaginação” na Internet – primeiro passo que deu para fosse alçado à categoria de micronação – imediatamente tomou contato com outros experimentos, com os quais passou a interagir, abeberando-se de projetos relativamente bem sucedidos, como o paradigmático Reino de Talossa, online desde 1995.
Além disso, a diferença temporal entre Porto Claro e Reunião, à época, é insignificante, especialmente levando em consideração a esterilidade e a lentidão com que se davam os acontecimentos nessa era remota. O fio da história era vago, quiçá oco. Mesmo porque o Sacro Império, in origine, não pode ser considerado micronação derivada de Porto Claro ou essencialmente apoiada nas idéias de Aguiar que, inclusive, não eram exclusivas ou 100% originárias dele – mas uma micronação plasmada por anglófonos.
Na verdade, a inter-relação entre Porto Claro e Reunião, desde idos de 97, que somente se foi tão fecunda e intensa que devemos corrigir os desinformados: Cláudio se inspirou em Aguiar ou Reunião em Porto Claro – o que dá na mesma – na medida em que este igualmente respirou daquele espírito micronacional, e desde que se reconheça que ambos inalaram o clima geral de micronacionalismo desses primórdios na Internet, cujas cepas por sinal os antecediam, em inglês e francês.
Ainda, há que se afastar de uma vez por todas o mitologema de que a Lusofonia irrompeu como por encanto da cachola de Aguiar. Fiat lux: e fez-se a “Lusofonia”! Claro que não. Deve-se compreender que não há Lusofonia sem que um peculiar eixo de convivência se dote de consistência, historicamente desenvolvido, caracterizado por práticas, espaços, concepções e discursos em comum. Lusofonia, propriamente falando, é um paradigma e como tal demandou tempo e substância cultural para ganhar forma e se consolidar.
É difícil apontar com exatidão o princípio da Lusofonia, como, diga-se de passagem, é-o para datar a aparição de qualquer novo grupo cultural. Todavia, o ano de 98 apresenta múltiplas positividades que permitem conjecturar que, algum momento por ali, possivelmente no segundo semestre, o paradigma da Lusofonia – também conhecido por reunião-portoclarense – encorpou-se a ponto de ser possível identificar-lhe as fronteiras (e daí se definindo). Entre as positividades, vale destacar a sedimentação das listas de mensagens – inclusive as distribuidoras intermicronacionais – o Prêmio Aruaque, a tentativa da OLAM, os portais de informação e interação, o turismo e o espraiar-se de novas micronações baseadas nas duas grandes pioneiras, bem como diversas práticas comuns de fazer micronacionalismo que o historiador competente poderá desvelar facilmente mediante as fontes disponíveis.
Graças à unidade histórica e cultural – cada vez mais fomentada pela clausura da língua portuguesa – Reunião e Porto Claro encabeçaram um novo grupo cultural que viria a ser conhecido por Lusofonia. Somente o alienado, que se fecha na casca de noz, não pode perceber o terreno comum sobre o qual erguem-se as micronações lusófonas. Contudo, é imperioso para o micropatriólogo não esquecer que nem sempre foi assim: o micronacionalismo lusófono é emanação do micronacionalismo mundial, com influxos anglófonos (especialmente talossanos) e ocasionais contaminações por outros paradigmas ao longo de sua história coesa de 8 anos.
Não por acaso o micronacionalismo pasárgado causou perplexidade nos seus primeiros passos – antes de vicejar e difundir-se e incorporado por outros projetos. Houve até quem dissesse que não se fazia ali micronacionalismo. É porque logo após a fundação, Pasárgada fundamentou-se de elementos de outros paradigmas, modificando pressupostos que muitos sequer percebiam – por estarem imersos nele (assim age o paradigma). Há que se falar mais do impacto pasárgado na Lusofonia em outra oportunidade…
Do breve ensaio, sobrelevam as conclusões, já arrazoadas noutras vezes:
1ª – Aguiar não criou a Lusofonia do nada, porém se inscreveu em um meio micronacional precedente, dele ingurgitando peças para amoldar e informar a micronação pioneira: Porto Claro – sem embargo se trate de micronacionalista com o pathos micronacional, patológico, tendo criado valores e práticas que vingaram; não há aqui intenção de desmerecimento, porém de esclarecimento factual.
2ª – Tanto Aguiar, quanto Cláudio, foram igualmente relevantes para a formação da Lusofonia, o que somente ocorreria em meados de 98. Antes disso, havia uma Lusofonia in statu nascendi – primordial e incipiente – sem práticas sedimentadas, na base da tentativa e erro e sem eixo de convivência próprio. Se há paternidade de um paradigma – o que é discutível – ele cabe predominantemente a Cláudio e Aguiar.
3ª – Esclarecidos os pontos acima, a crença de que em um momento mágico deu-se partida à Lusofonia devido à cabeça de Aguiar trata-se de perspícuo e manifesto mito, que tem sido cultivado e promovido por múltiplas causas: ingenuidade, desinformação, preguiça (de pesquisar) ou simplesmente conveniência. Há que se recordar que a fé numa lenda muitas vezes é sincera – mesmo que patentemente falsa – porque nos torna melhores do que realmente somos ou porque precisamos encontrar uma origem imaculada e especial para a nossa existência.
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