O Socioculturalista #8

25Maio07

Editorial

John Stuart Mill e um discurso pela pluralidade.
Pois a maioria dos homens eminentes de todas as gerações passadas tinham muitas opiniões que agora se sabem erradas, e aprovaram várias coisas que hoje ninguém justificaria. […] O homem, como ser moral ou político, […] pode corrigir seus mal-feitos. Ele é capaz de retificar-se de seus erros, pelo debate e pela experiência. Não somente pela experiência. É necessária a discussão. […] No caso de uma pessoa cujo julgamento realmente merece confiança, o que o faz como tal? Pois ele manteve uma mente aberta para as críticas em relação a suas opiniões e condutas. Pois ele manteve a prática de ouvir tudo o que podia ser dito contra si, considerar o que é justo e descartar o que é falacioso. (John Stuart Mill. On Liberty. p. II.7. original em: http://www.econlib.org/library/Mill/mlLbty.html).

Sem concorrência não há incentivo à inovação: esta talvez é uma das afirmações mais corretas de utilitaristas como JS Mill. Quando não há pluralidade de opiniões não pode se falar em liberdade, pois não há direito de escolha. Não existindo voz dissonante, é impossível que haja debate. Sem debate, não há como corrigir erros do passado. O debate faz com que as teses, ainda que opostas, amadureçam e ganhem consistência interna.

É por isso que o objetivo pessoal do político em aniquilar sua oposição distoa tanto de seu dever oficial quando mandatário público. Se parece bom ao político que sua visão de mundo seja a única, para sociedade, isto é o desastre: é a estagnação de sua evolução, ou mesmo um retrocesso.

Aqueles que hoje ocupam cargos de poder nas três principais nações lusófonas: Reunião, Porto Claro e Pasárgada precisam se atentar a isso. Não seria o pensamento único e a ditadura da maioria a possível causa do marasmo político-social do micronacionalismo em língua portuguesa?

Pessoalmente, a despeito de ter firme minhas visões de mundo e convicções políticas, nunca fugi do debate. Ao contrário, sempre ouvi meus opositores diretos. Isso não significa, todavia, que a disposição de ouvir significa necessariamente concordar com o que é colocado. Nos dizeres de Mill: “considerar o que é justo, descartar o que é falacioso”. Ademais, já falei algumas vezes da necessidade de se manter os velhos paradigmas dentro do debate micronacional, como contraponto ao que proponho.

Por uma lusofonia plural e aberta ao debate.

 

Pensamento socioculturalista

As duas revoluções – Carlos Góes.
O micronacionalismo contemporâneo necessita de duas revoluções: uma teleológica e outra tecnológica.
A primeira, passa pela construção de um verdadeiro nacionalismo popular – ex partis populis – que, por meio da lenta lapidação de uma cultura comum –  com doutrinas, normas de procedimento, artefatos, símbolos, métodos e costumes -, gere os laços imaginários de identidade nacional que faltam para dar razão ao fragmento -nacionalismo do [micro-]nacionalismo. Este é processo extremamente complexo, pois a construção de vínculos nacionais interpessoais leva algum tempo e, ademais, o aspecto voluntarista do nacionalismo em miniatura contribui para tornar estes laços mais fracos.
Quais são os modos de fazer isto? Governos não produzem cultura. Podem, ao máximo promover uma homogeneização cultural (v. GUIBERNAU, MONSERRAT, Nacionalismos.). É exemplo disso a escolha do Império Austro-Húngaro pela germanização em detrimento do seu multiculturalismo germânico-magiar.
Esta homogeneização é exemplo de nacionalismo oficial, e não popular. O “benchmark” que temos de nacionalismo oficial em escala reduzida é Reunião. Nela, Cláudio de Castro, utilizando-se das tradições de 10 anos de micronacionalismo define o que é o “way of life” reunião e o que está fora dele. Esta lógica foi aplicada por diversos governos na história, em especial nos absolutos/ditatoriais (vide Sião e Estados da Indochina), mas também nos democráticos (vide o massacre dos nativos da América do Norte pelos Estados Unidos) – desde que, nestes últimos, haja significativa distância entre o grupo dominante e a massa popular.

O nacionalismo popular, entretanto, é de muito mais difícil realização – em especial no modo em que se dá o micronacionalismo atual. Para que este aconteça é necessário que a própria sociedade alimente o espírito de pertencimento e identidade nacionais, para que o vínculo de nacionalidade seja muito mais que uma escolha ordinária entre camisetas amarelas ou vermelhas, se tornando algo profundo – cujo rompimento não seja simples. Das relações sociais entre os indivíduos emergirá a idéia de nação e, naturalmente, a força do vínculo nacional será diretamente proporcional ao direcionamento das relações sociais ao reforço do sentimento nacional.

Afora isso, para que os micronacionalistas consigam compreender melhor as relações sociais, são necessárias novas ferramentas de comunicação. Muito embora a comunicação escrita tradicional do micronacionalismo transmita relações sociais, é fato que estas não se limitam a isso. As cores, imagens, cheiros, sons, movimentos e emoções formam aspectos intangíveis das relações sociais. Em outra palavras, é muito mais fácil perceber alguém você conversa por vídeo-conferência como um indivíduo real que tem relações sociais com você do que um remetente de e-mails que você não conhece.
Esta é a segunda revolução necessária: a tecnológica. Ela vive em função da primeira, tendo como objetivo reforçar a interpretação teleológica do projeto micronacional como sendo um projeto real de nação. As novas tecnologias ora disponíveis para utilização online têm como um ponto: a interatividade. E é na interação que reside o ponto nevrálgico das relações sociais. Sem aquela estas não podem existir.
Redes de relacionamento, wikis, vídeos, podcasts/blogs, fotos, áudio e vídeo-conferências. O desafio é conseguir agrupar todos estes elementos em um único recinto e trazer racionalidade em seus usos para o micronacionalismo. Tendo estes elementos como foco, deslocaremos o eixo da interação micronacional da emulação às relações político-sociais.
No lugar de palácios imaginários, fotos de nosso dia-a-dia pessoal. Ao invés de dizer “o que Hitler fez não importa no micronacionalismo”, o aproveitamento de toda a nossa carga intelectual e emocional em nossa prática micronacional. Podem pensar: ora, mas as pessoas terão “medo” de fazê-lo, de se expor. Ora, mas as mesmas já não o fazem hoje? Orkut, Flickr, Blogger, Skype, YouTube estão aí para nos provar isso. A tal “web 2.0”. Se as micronações passarem a se apresentar desta forma desde sua gênee, os novatos não terão problema em se adaptar – pois não estarão submersos nos velhos dogmas que habitam a Lusofonia.

Artigo

Micronacionalismo e vida – Bruno Cava, Março-Maio de 2005.

PARTE I

O título deste artigo contém duas coisas que são freqüentemente separadas e, às vezes, até contrapostas. O cisalhamento de micronacionalismo e vida se revela em várias expressões e discursos dos micronacionalistas. É uma antinomia universalmente conhecida não apenas na casca de noz lusófona, mas em todo mundico. Aparece, principalmente, por meio da dicotomia “micro” x “macro”, que num sentido ampliado passou a significar – inconscientemente ou não – duas realidades existenciais distintas: a vida micronacional e a “vida real”, a propriamente dita, a que “realmente” importa, a “verdade verdadeira”.

Outro exemplo expressivo está na definição de micronacionalismo como um mundo à parte, novamente num sentido amplíssimo, em que o micro se diferencia do “mundo real”, o universo em que vivemos “efetivamente”. Versões alternativas e atenuadas desta visão acontecem quando diminuímos o fenômeno (afinal, ele é micro) a ponto de o reduzirmos a um mero hobby, jogo ou até terapia, em um sentido que claramente se contrapõe à “vida verdadeira”, de verdadeiras preocupações, problemas, objetivos e, porque não, de verdadeiras pessoas.

Nesta concepção, o micronacionalismo somente medra no momento em que o micronacionalista detém plena estabilidade econômica, profissional/acadêmica e emocional e somente quando sobrar algum tempinho “vago” (nenhum tempo é vago!), podendo, enfim, exercitar seu lado lúdico, terapêutico, num supremo desinteresse e numa pura inutilidade. Atividade absolutamente gratuita, desimportante, altamente secundária, auto-suficiente, estanque, um “fim em si mesmo” como se tornou cliché afirmar.

Satisfeito de si e profundamente irreal, o micronacionalismo resume-se a um mero deleite pessoal, ao abrigo do tumulto e das lutas da vida, refugiado do “real”, numa evasão da existência para um mundo melhor, vôo (mergulho?) da imaginação ao utópico, remédio diário às frustrações, disparates, injustiças, angústias e solidões, voluntário divórcio do micronacionalista perante as preocupações que afligem a humanidade e que, tão reais. Colocar a vida entre parênteses e fruir do hobby que chamamos micronacionalismo.

Mas há um outro lado, um outro micronacionalismo. É o micronacionalismo que se pretende empenhado, engagé, compenetrado, que quer enfrentar os problemas de seu tempo, que deseja difundir e discutir questões políticas, religiosas, sociais, culturais, científicas, que quer ver triunfar a potencialidade da vida, no e pelo micronacionalismo, o que, por via transversa, significa triunfar a potencialidade do micronacionalismo, no e pela vida. Micronacionalista assim é aquele que se atira ao mundo micronacional em busca do alimento espiritual pleno e lhe destaca um campo de ação tão vasto quanto o da vida.

Acompanhando a experiência do micronacionalista desde a adesão, mistura-se e confunde-se com as demais esferas de sua vida, múltiplas esferas que se concertam, como numa canção, à unidade rítmica da própria vida. Tensão dialética do viver micronacionalmente e do micronacionalismo vivente, um contribuindo ao outro ou, melhor, um sobrepondo-se ao outro, num cadinho em que não se separam as mediações; elas tão-somente se distinguem, o que é bem diferente. O micronacionalismo em cada um é parte indissociável de sua história de vida, inextricável do seu estar-no-mundo.

Na verdade, procuramos expor acima dois aspectos que, na prática micronacional, são inseparáveis e essenciais. Em um vetor, o micronacionalismo enquanto manifestação da vida e potência de realização; no outro, a função lúdica, hobbística, contemplativa, o “micronacional pelo micronacional”, encerrado na torre de marfim dos virtualismos. Aqui, o espaço do jogo, do distanciamento, da fuga, dos pseudônimos; lá, a adesão plena, o mergulho existencial, o empenho, a responsabilidade, o nome verdadeiro.

Resolver a antinomia, conciliando os extremos, é a tarefa que nos impusemos para a próxima versão da Avant-Garde.

PARTE II

Como é possível que uma mesma atividade possa se manifestar de maneiras tão diametralmente opostas? Como podem alguns micronacionalistas acreditarem no cisalhamento da realidade, no micronacionalismo da evasão, do hobby e do jogo, enquanto outros vinculam-se à tendência exatamente contraposta: adesão, engajamento, compromisso sério e realismo?

Por um lado, o micronacionalismo está realmente ligado à vida. Somos nós mesmos enquanto micronacionalistas. Por mais que se assuma deliberadamente uma postura escapista, transformando-se em um personagem, um alter ego, não se pode escapar por completo da existência pessoal. Por detrás da máscara, o ser real, uma história única de vida, em sua especificidade e complexidade. Todo esforço por se despir de si-mesmo é, em última instância, vão e ilusório, vindo a personalidade verdadeira, real e autêntica a emergir, tanto mais quanto mais intenso – vívivo – o momento.

Os paplistas mais experientes e ardilosos jamais conseguirão produzir um outro “eu”, na medida em que este Outro não passa da composição consciente a partir da vida espiritual do paplista, uma dilatação e contração do próprio ser segundo os mesmos caracteres. Somente alguém que sofra de genuína múltipla-personalidade – distúrbio estudado pela psiquiatria – seria capaz de se travestir plenamente em dois ou mais personagens. Ainda assim, conseguiria fazê-lo somente inadvertidamente; isto é, ora participará como um e ora como outro, mas sem sabê-lo, podendo ocorrer de as personalidades interagirem entre si à revelia da consciência do indivíduo perturbado.

Na dramaturgia, quando um ator interpreta Hamlet, ele não está “incorporando” a personagem shakespereana enquanto tornando-se a personagem. Na verdade, ele próprio está criando e construindo o príncipe dinamarquês. E está construindo-o a partir de sua experiência, de sua história; vê a personagem através da própria vida e é incapaz de interpretá-lo longe dessa amálgama existencial. A personagem, portanto, é tão-somente um referencial estilístico, um recipiente que o intérprete irá preencher com o seu próprio ser; o ator é o escultor que dá forma à matéria bruta; uma peça de Shakespeare seria um diamante em estado bruto e não passará disto antes que alguém suficientemente talentoso dê-lhe a forma apropriada.

Portanto, nem mesmo nos casos extremos, se pode pensar em separar o mundo micronacional do “mundo real”, a fortiori, não se pode separar o “eu micronacionalista” do “eu real”, mesmo quando o indivíduo intencionalmente busca travestir-se em outrem, como nas micronações altamente virtualistas, nas peculiaristas e naquelas em que “controlar” múltiplos personagens é permitido. A teoria da dupla-verdade, a visada do simplório sobre o “micro” e “macro”, estudada mais a fundo, só pode resultar em esquizofrenia: irracional, ilógica, impensável.

De outro lado, o micronacionalismo é também uma atividade específica da vida, que dela aflora, afirmando-se em uma natureza particular, ou seja, um espaço com regras próprias, distinto, peculiar à vida. Quando se define o micronacionalismo como hobby ou jogo, atividade lúdica, quer-se frisar a especificação da prática micronacional perante outras práticas. A idéia é delinear com clareza a esfera de existência que é o mundo micronacional, ressaltando-se que não é o mesmo que a esfera familiar, a esfera profissional, a acadêmica, a “social”, a amorosa e tantas outras, cada qual com suas regras próprias. Quando se coloca o micronacional à parte da “vida real”, do “macro”, a idéia é distingui-lo das outras muitas esferas.

Assentar a coesão entre micronacionalismo e vida não é o mesmo que declarar a fusão dos dois; não significa a desaparição do primeiro conceito no segundo. O problema reverso também deve ser evitado: afirmar a pura gratuidade e autonomia do micronacionalismo é esquecer-se do quanto este deve à vida e como pode influir nela. Quando se fala em micronacionalismo real ou engajado, destaca-se que a vida humana nele penetra e por ele é penetrada, podendo ser tão razão de vida quanto outras razões, a critério do indivíduo e exercendo funções gerais da vida: educação, moral, cultural, científica, religiosa, política etc.

Seriedade e jogo, compromisso e hobby, realismo e virtualismo, responsabilidade e evasão, funcionalidade e gratuidade encontram-se e cooperam entre si e nisto não há nada de enigmático. O vôo da imaginação, a alegria de ser Outro e o desapego irresponsável conciliam-se com o mergulho existencial, a angústia de ser Si-Mesmo e o laço de responsabilidade; compatibilizam-se necessariamente ou senão o mundo micronacional descarrilhar-se-ia para os dois extremos que o anulariam: 1) a esquizofrenia indizível e 2) o esvaziamento da natureza micronacional.

É preciso manter os dois aspectos juntos. Pois quando o mundo micronacional adquire sua caracterização, sua esfera particular, ele é invadido e alimentado pela vida, e é aí que ele ganha vida, que fica animado como vida micronacional que é. Na vida, o micronacionalismo encontra a sua humanidade; no micronacionalismo, a vida encontra essa forma de realização particular, diferenciada, que nos caracteriza. No fundo, trata-se da crônica dificuldade em diferenciar os verbos “distinguir” e “separar”.

O micronacionalismo não se separa da vida; o micronacionalismo distingue-se na vida.

Expediente

Editor – Carlos Góes

Redação – Carlos Góes, Filipe Sales, Rodrigo Mariano e Fernando Henrique Cardozo.

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